Carlos Ferreira, 2019
LENDA DO MENINO JESUS DA CARTOLINHA
Mandava no mundo de então, o “Grande Rei Sol”, Luís XIV de França e Navarra, o monarca que havia de reinar mais anos de todos os tempos. Em Portugal, Dom João V o “Magnânimo”, acabava de suceder a Dom Pedro II o “Pacífico”. Em Roma mandava o ducentésimo quadragésimo terceiro Papa, Clemente XI, e em Miranda do Douro vivia o seu décimo nono bispo, Dom João Franco de Oliveira. Carlos II, o “Enfeitiçado”, que apesar de ser um mentecapto da consanguinidade foi rei de Espanha e do seu grande império de além mar, morria no ano de 1700 sem deixar herdeiros. Acabavam-se assim em Espanha os reinados da dinastia dos Habsburgos da casa de Áustria e começavam os reinados da dinastia dos Borbons da casa de França. Como as mudanças em governos tão importantes nunca se fazem sem lutas, entre 1701 e 1714 a guerra da Sucessão alastrou por toda a Europa. Primeiro Portugal apoiou a França e os Borbons, mas depois assinamos o tratado de Methuen e passamos a apoiar a Inglaterra e os Habsburgos. Resultado desta mudança: guerra com a Espanha e França. E sempre que há guerra entre Portugal e Espanha, os primeiros a levar na cabeça são sempre os mirandeses.
Uma das mais importantes praças militares raianas, Miranda do Douro, foi cercada e sitiada pelas tropas castelhanas a 11 de março de 1711. Os dias eram cada vez mais penosos e difíceis de aguentar. Dentro das muralhas acabaram-se as provisões, a água começou a escassear e a ficar cada vez com pior qualidade. Muitas doenças começaram a alastrar, os reforços das tropas portuguesas não chegavam, o povo entrou em desânimo total. A morte e o diabo tomaram conta da cidade, mas desta vez Deus não se esqueceu de Miranda. Para vir em seu auxílio, enquanto descia pela rampa de um raio de sol, fez-se Menino Jesus e disfarçou-se com roupas de fidalgo cavalheiro. Assim que aterrou, começou logo a correr pelas muralhas e pelas ruas tal um vendaval de vento, enquanto gritava:
- A eles, a eles. Ânimo valentes mirandeses. Unidos expulsamos espanhóis e diabos. Nós somos mais fortes que eles: força mirandeses, força Miranda…
No dia seguinte já belzebu saía à rua para lhe barrar os caminhos, mas o Menino era mais esperto, e a cada hora mudava a cor das vestimentas para enganar o demónio: verde, vermelho, amarelo e dourado; com capa de honras, vestido de bispo, de fidalgo, general e soldado, enquanto gritava por todo o lado:
- A eles, a eles. Ânimo valentes mirandeses. Unidos expulsamos espanhóis e diabos. Nós somos mais fortes que eles: força mirandeses, força Miranda…
E o ânimo tomou novamente conta de Miranda, e um exército de mirandesas e mirandeses saiu de suas casas armados com foices e gadanhas, varapaus e espingardas, ferros e artimanhas, enquanto gritavam:
- A eles, a eles. Ânimo valentes mirandeses. Unidos expulsamos espanhóis e diabos. Nós somos mais fortes que eles: força mirandeses, força Miranda…
E ao fim de sete dias e sete noites, ao comando da voz do bravo Menino, o povo de Miranda expulsou a morte, os espanhóis e os belzebus. E os reforços das tropas portuguesas chegaram: Miranda estava salva: MILAGRE.
Comprida a sua missão, o Menino Jesus subiu pelo primeiro raio de sol da alvorada até ao céu. Nunca mais ninguém o voltou a ver!
Mas o povo de Miranda, que nunca soube viver sem honra nem sem gratidão, preparou um altar envidraçado na sua Sé, e dentro colocou a imagem que mandou fazer ao seu bravo Menino Jesus. E vestiu-o com os mais belos fatos que souberam fazer: verdes e vermelhos, amarelos e dourado; capa de honras, vestes de bispo, fidalgo, general e soldado… Para que pelos séculos dos séculos, nunca o mundo se esqueça da valentia daquele Menino, que agora é de Miranda.
E mais de cem anos depois, alguém lhe ofereceu uma cartolinha preta para fazer a sue cabecinha mais burguesa. E todos os anos sai em procissão, levado em ombros pelos meninos de coração.
E é esta a velha lenda que conta o milagre do Menino Jesus da Cartolinha: quem a sabe que a conte e quem não, que a aprenda.